terça-feira, outubro 10, 2006

Democracia convive com fascismo social

Uma vez que os inquilinos da Fundação D. Pedro IV têm sido confrontados com actos de fascismo social, publicamos extractos de uma entrevista, na qual, o Professor Boaventura de Sousa Santos, explica o mesmo conceito, bem como outros assuntos relaccionados com a cidadania.

Folha - O sr. afirma que sociedades democráticas convivem com fascismo social. Poderia explicar esse conceito?

Santos - É a extrema polarização da riqueza em muitos países, e o Brasil é um bom exemplo disso -está criando uma forma de convivência semelhante à produzida pelas sociedades fascistas tradicionais. É a convivência com o medo, o colapso total das expectativas, que é o fato de a pessoa viver sem saber se amanhã estará viva, se terá emprego, se terá liberdade.Esse tipo de convivência fascista não está sendo produzido por um Estado fascista: o Estado é democrático, há partidos, há assembléias, há leis, há instituições públicas. Simplesmente há uma população, cada vez maior, que não tem acesso a esses direitos.

Folha - O sr. pode dar exemplos dessa situação?

Santos - Eu vou a uma cidade como Medellín, na Colômbia, governada pelas chamadas "bandas", grupos armados privados, como alguns que encontramos no Rio e em São Paulo, e eles não são Estado. São sociedade civil, são máfias privadas. E eles exercem funções do Estado, como a justiça, por exemplo.O que acontece também é uma colaboração entre o Estado e essas máfias. É o exemplo das polícias, que, muitas vezes, são tão corruptas quanto essas máfias e atuam em conjunção com elas.O que se passa hoje no Rio, por exemplo, é que uma parte da polícia é muito ligada a grupos criminosos. A pergunta é: onde acaba o Estado e começa a sociedade nesses casos? É muito difícil dizer. É uma coisa híbrida.Os grupos armados das favelas dizem às pessoas a que horas elas devem entrar, devem sair etc. As relações sociais são fascistas porque um grupo social tem direito de veto sobre outros.

Folha - Como esse fenômeno se origina?

Santos - Vivemos em meio ao fascismo social porque a democracia deixou de ter capacidade de redistribuição. A democracia só tem tensão com o capitalismo, o que leva o capitalismo a funcionar com um rosto humano, se tiver capacidade de redistribuir: de tirar um pouco dos ricos para dar aos pobres.O fascismo social emerge se a democracia deixa de fazer isso -e a gente vê que no Brasil a decadência das políticas públicas sociais vai nesse sentido.O capitalismo só pode combinar com a democracia se ela for essa caricatura de democracia em que a gente vive.

(...)

Folha - Existe uma sociedade civil global?

Santos - É aquela formada pelos oprimidos. É o que eu chamo de sociedade civil estranha e indiferente, é a sociedade dos excluídos do contrato social.Alguns grupos jamais estiveram no contrato social, como os índios. Os trabalhadores estiveram e estão sendo expulsos. As minorias étnicas não estão nesse contrato social em muitos países.Claro que há outra sociedade civil global, formada pelos executivos e do mercado. A avenida Paulista é um dos grandes centros

Folha - O sr. defende a desobediência civil como forma de luta por determinados direitos. Isso não ameaça a democracia?

Santos - Não. Os momentos fortes da história da democracia não são discussões no Parlamento. São momentos em que grupos que estão excluídos lutam pela inclusão com medidas que, muitas vezes, são ilegais.Se as greves não são permitidas, fazem greves. Se as marchas não são permitidas, fazem marchas. Foi o que aconteceu com o movimento negro nos Estados Unidos. Se era proibido ir a um restaurante, negros entravam e ficavam lá conversando. Era uma ação ilegal, mas foi assim que nasceu o movimento pelos direitos civis.

Folha - A globalização alternativa não é uma utopia?

Santos - Sim. Mas eu cito sempre Sartre nessa questão: todas as idéias, antes de serem realizadas, parecem utópicas..

(GABRIELA ATHIAS, DA REPORTAGEM LOCAL E DANIEL BRAMATT, , EDITOR-ADJUNTO DE COTIDIANO)

(© Folha de São Paulo)