Quem habita no lote 232, do Bairro dos Lóios, em Marvila, vive em constante sobressalto. Há muito que é sabido que aquele lote tem problemas estruturais profundos. A sua construção ficou pela metade, bem como a vida destas pessoas que não tiveram outra alternativa senão habitar as casas. O chão e as paredes estão ainda em cimento e a estrutura do prédio está em corrosão, devido à má construção. As galerias de ligação entre os apartamentos são sombrias, não têm iluminação e causam insegurança nos moradores; as casas estão cheias de humidade; os quadros de electricidade estão abertos e os curtos- circuitos são constantes. As saídas de emergência, por incrível que pareça, têm os cadeados do lado de fora. Os moradores temem o pior e dizem mesmo que em caso de sismo não sabem como é que a estrutura vai reagir...
A gota final foi quando a Câmara Municipal de Lisboa cedeu os fundos do prédio para oficinas de automóveis onde se fazem todo o tipo de trabalho. Os moradores não vêem esta situação com bons olhos, porque naquele lote não há gás canalizado e existem cerca de 500 botijas de gás...
Tudo isto se passa num bairro de Lisboa, em pleno século XXI , onde vivem mais de seis mil pessoas. A população sente que vive numa Lisboa à margem. Dizem que apesar de serem um bairro de realojamento- cerca de 70 por cento das habitações, uma vez que as restantes são cooperativas- não podem ser tratados como “lisboetas de segunda”. Sentem-se esquecidos, traídos, abandonados, a ver os seus problemas aumentarem e as soluções a tardarem.
A Associação Tempo de Mudar, criada através da vontade dos moradores em inverter esta realidade e com o Apoio da Santa Misericórdia de Lisboa, tem movido montanhas para dar pequenos passos. O presidente, Eduardo Gaspar, não esconde o desânimo: “Neste bairro, está tudo por fazer. Conforme o construtor foi deixando os prédios, ninguém mais lhes tocou. Desde que nasceu que este bairro precisa de reordenamento”. Esta é a batalha primeira da Associação que há anos luta pela resolução do problema da falta de segurança do lote 232 que pode ruir “como um baralho de cartas”. A solução, segundo a Associação, passa pela implosão do edificio e o realojamento dos moradores. Para isso, pede que as habitações sejam alvo de um estudo, “que seja identificadas as patologias do edificio e que as recomendações feitas no estudo sejam cumpridas. Isto porque diversas entidades deram vários pareceres em como as pessoas que aqui moram correm perigo e até hoje nada foi feito.
Espírito de aldeia
No entanto, os problemas não existem só no lote 232. Por todo bairro, os edifícios têm ligação por túneis sombrios e muitos prédios só têm entrada e saída através de pontes que ligam os edifícios. “O objectivo foi fomentar o espírito de aldeia, onde toda a gente se conhece e partilha a vida. Mas não resultou. Muitas pessoas colocaram barreiras nos acessos e muitos prédios ficaram isolados. A boa vizinhança deixou de existir e deu lugar a grandes conflitos”.
As pontes e pilares que ligam os edifícios são outra fonte de preocupação. A sua estrutura também está em corrosão e “corre o risco de colapso”. A qualidade de construção das habitações, da responsabilidade do IGAPHE. deixa muito a desejar, sublinha Eduardo Gaspar, em contraste com a habitação da responsabilidade das cooperativas, que foram construídas para “uma classe média alta. E os outros portugueses, aqueles que foram realojados, o que são?”.
No entanto, ao longo de 23 anos as batalhas têm sido mais do que muitas. As conquistas nem tanto, mas o presidente da Associação reconhece que a persistência dos moradores também teve os seus frutos. “Já houve intervenções, há muitos anos, neste bairro, feitas de uma forma faseada, porque isto ainda era pior do que é hoje. Primeiro interviram nas grandes vias e depois nas zonas secundárias. Só que agora, as zonas intervencionadas já precisam de requalificação devido ao abandono...”.
Creche e jardim-de-infância
A Associação Tempo de Mudar nasceu em 1983, fruto do descontentamento dos moradores. Para além de incentivar a população a trabalhar em comunidade, esta entidade presta um precioso auxílio social. Em 2003 foi constituída IPSS, gerindo, num edifício cedido pela autarquia, um equipamento social de creche e jardim- de-infância. Actualmente, 126 crianças frequentam o equipamento, a única resposta em termos de infância no bairro. A lista de espera é enorme, as necessidades são muitas, mas segundo Eduardo Gaspar “este é um espaço importante de acolhimento. Não é o suficiente, mas já é alguma coisa”.
Habitações devem continuar no Estado
Actualmente, cerca de 400 famílias do Bairro dos Lóios têm as suas vidas viradas do avesso. A doação de fogos, anteriormente geridos pelo IGAPHE, à Fundação D. Pedro IV ditou o aumento “absurdo das rendas”. Eduardo Gaspar afirma que nalguns casos a renda subiu para mais de 500 euros.
Desde Novembro que a Associação Tempo de Mudar tem sido a mão amiga de muitos moradores, que os apoia nas suas decisões: “Não fazemos o trabalho por elas. Organizámos as pessoas lote a lote, criámos comissões restritas e todas as decisões são tomadas pelos moradores, nós apenas lhes tentamos dar voz”. A Associação não concorda com a doação de património à Fundação e quer que as habitações continuem afectas ao Estado. Por outro lado, a Associação gostaria que o Decreto-Lei 166/93, que permite a renda apoiada, fosse alterado, “porque o decreto tem muitas lacunas e não é favorável aos inquilinos”.
Obras de Santa Engrácia
A extensão do Centro de Saúde de Marvila começou a ser construída, no Bairro dos Lóios, há seis anos. O objectivo era que num curto espaço de tempo, cerca de 16 mil utentes ficassem afectos àquela extensão. As obras seriam então da responsabilidade da autarquia, e o equipamento caberia à Administração Regional de Saúde.
Seis anos depois, a extensão ainda está por acabar e o Centro de Saúde de Marvila continua a rebentar pelas costuras. As promessas para a abertura do espaço têm sido mais do que muitas e a Associação Tempo de Mudar não quer esperar mais tempo. Eduardo Gaspar está revoltado com esta situação e pede que o Governo tome uma atitude, “uma vez que na ARS nos deram a entender que não têm qualquer intenção de pôr a extensãode saúde a funcionar”.