quinta-feira, maio 11, 2006

Surpresa: Fundação D. Pedro IV "metida" no Aqueduto das Águas Livres

Património por Jorge Raposo (Arqueólogo e director da revista Al-Madan) De Novo o Aqueduto das Águas Livres Depois de, há cerca de dois anos, o projectado fecho da CRIL ameaçar a destruição de 250 metros do Aqueduto das Águas Livres, agora foram as caves de um edifício a destruir cerca de 60 metros, com o beneplácito das instituições da administração pública central e local que deviam zelar pela sua protecção. Para quem não saiba ou não recorde, o Aqueduto das Águas Livres é uma das grandes obras da engenharia portuguesa, construída entre 1746 e 1834 para garantir o abastecimento público a Lisboa. Trata-se de um complexo sistema de 58 km de canalizações e aquedutos, onde se destaca o monumental atravessamento dos quase 950 metros do vale de Alcântara. Merecidamente, o conjunto foi classificado pelo Estado português como Monumento Nacional logo em 1910, mecanismo de protecção que viria a ser precisado e alargado em nova legislação aprovada em 1995, 1996 e 1998, aventando-se até a sua candidatura a Património Mundial. Todavia, depois da Circular Regional Interior de Lisboa (IC17-CRIL), recente notícia no Público Local (2006-01-30) deu conta de mais um processo que ilustra bem situações similares, facilmente transponíveis para outros contextos, levando-nos a reflectir sobre a eficácia da legislação nacional relativa aos bens patrimoniais e a acção das entidades a quem a mesma comete responsabilidades de zelar pela sua aplicação. Segundo texto do referido periódico, assinado por José António Cerejo, o Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR) começou por autorizar, em Abril de 1997 e sem restrições, a construção de um edifício com quatro caves no cruzamento da Av. D. Carlos I com a Rua de São Bento, em Lisboa, para instalação da Fundação D. Pedro IV. Meses depois, afinal, o IPPAR apercebeu-se (!) que no terreno em causa se localizava um dos ramais do Aqueduto, facto de que deu conhecimento à Câmara Municipal de Lisboa (que entretanto aprovara o projecto de arquitectura) e à Empresa Pública de Águas de Lisboa (EPAL), a quem foi pedido parecer. Embora constatasse que a obra em causa não colocaria em risco a actual rede de distribuição de água (que, em parte, se desenvolve dentro das antigas galerias), seria esta empresa a pronunciar-se pela interdição de “quaisquer intervenções que afectem a integridade do sistema das Águas Livres, ou que agravem as suas condições actuais”, estranhando até a posição inicial do IPPAR. Apesar disso, o processo foi formalmente aprovado pela CML, desenvolvendo-se a obra em 1999, com a escavação de cerca de 1600 metros quadrados. A necessidade de alterações ao projecto de arquitectura justificaria, contudo, nova consulta à EPAL, que constatou, em Outubro de 2000, terem as escavações “interceptado o aqueduto, destruindo-o numa extensão que se estima em 60 metros”. Lembrando tratar-se de um Monumento Nacional, a EPAL concluía não poder dar o seu acordo “às alterações pretendidas”. Para um fecho condigno, falta dizer que esta posição foi ignorada e que a própria empresa acabou por retirar as suas objecções um mês depois, justificando-se com a decisão do IPPAR, a quem caberia a responsabilidade de avaliar este tipo de questões. A CML aprovou o que faltava aprovar e a obra concluiu-se em Fevereiro de 2002. Falta dizer ainda que o presidente da Fundação D. Pedro IV, dona da obra, garantia candidamente não ter conhecimento da existência de qualquer ramal do aqueduto no seu terreno, nem se ter apercebido de que o empreiteiro destruíra “uma galeria em pedra com dois metros de diâmetro e sessenta metros de extensão”! Realmente, há gente muito distraída… Perante isto, fica patente a inoperância e falta de eficácia de qualquer quadro legislativo, apesar da sua eventual bondade, quando o mesmo não está convenientemente regulamentado, nem se definem claramente as atribuições e competências da administração pública central, regional e local que tutela e condiciona a sua aplicação, nem sequer as condições de exercício dos direitos e deveres dos cidadãos e de outros agentes do nosso viver colectivo. A posição do dono da obra e da CML, igual à de tantos outros promotores de obras e autarquias por todo o país, tende sistematicamente a explorar as fragilidades deste contexto em proveito de interesses privados ou institucionais (conhece-se o peso que a construção civil tem no financiamento municipal), mesmo que isso implique lesar o interesse público e ignorar o direito que nos assiste a uma gestão transparente e socialmente partilhada do território e dos seus recursos (incluindo os patrimoniais). Quanto ao IPPAR (que já no processo da CRIL havia tido uma posição errática e dado mostras de inexplicável tibieza), fica a imagem da indesculpável displicência e ligeireza com q ue alguns processos são avaliados, gerando erros de difícil correcção e a sensação de uma frequente falta de afirmação e de capacidade para cumprir as atribuições que lhe estão cometidas, isto é, “a salvaguarda e a valorização de bens que, pelo seu valor histórico, artístico, científico, social e técnico, integrem o património cultural arquitectónico do País”. Por que é que isto acontece? Por falta de enquadramento numa política governativa coerente? Por ausência de uma visão estratégica quanto ao papel deste Instituto na sociedade portuguesa? Por dificuldades de gestão de uma máquina grande, pesada e com vícios de funcionamento de há muito acumulados? Por desmotivação, falta de qualificação ou desresponsabilização dos seus quadros dirigentes e técnicos? São apenas algumas das muitas perguntas que poderemos colocar quando se volta a falar da reorganização dos serviços dependentes do Ministério da Cultura, nomeadamente com a “fusão” do IPPAR e do Instituto Português de Arqueologia (IPA), que justamente se teme possa vir a agravar esta situação.